O admirador de Monet
– Quem é o pintor daquele quadro?
A pergunta, feita de repente, me pegou desprevenida. Nem havia reparado que o quarto do hospital tinha alguma pintura em suas paredes, imersa que eu estava na preocupação de perder a presença física de quem me questionava agora com certa veemência.
Olhei para trás e observei a tela. Era uma gravura bonita, com barcos à vela. Cheguei mais perto, à procura da identificação do autor. Não havia. Dei essa resposta ao meu pai, que não conformou-se.
– Mas é só procurar na Internet que tu descobre. Usa o teu celular – exigiu, com sua autoridade natural e mansa.
Argumentei que não era fácil sem ter alguma informação a mais sobre ao quadro. Ele rebateu com calma, analisando que devia ser uma obra de um artista impressionista. Foi explicando o palpite de forma bem simples e direta, sem ser pedante, como costumava fazer em todas as exposições de arte que o acompanhei ao longo da minha vida.
Ele interrompeu minhas reminiscências, falando, meio exaltado:
– É Monet, pesquisa aí, só pode ser ele!!
O tom animado contrastava com o que ele usava nos últimos meses, após seu diagnóstico de câncer terminal. Além da fragilidade física, meu pai, normalmente alegre e despreocupado, havia assumido uma postura meio blasé, fingindo não estar ciente da proximidade da morte. Evitava o assunto e permanecia silencioso e um pouco rabugento, longe do seu comportamento habitual. Ao ser informado que teria que ir para um hospital, resmungou que não gostaria mas sabia que não tinha mais direito a tomar as próprias decisões.
Mas, então, surgiu Monet e ele pareceu iluminar-se como antigamente.
– O que tu tá esperando? Pesquisa qual é o quadro. Eu quero saber o nome e a cidade que aparece ali.
Obedeci, e após poucos minutos, descobri e mostrei para ele.
– Regatas em Argenteuil – respondi, aliviada por conseguir obter a resposta.
Ficamos um tempo nesse jogo, eu encostada na grade da cama hospitalar mostrando a ele informações, como o fato da tela ter sido pintada dentro do barco ateliê do artista, ancorado às margens do Sena.
Ele foi dormir radiante. Nos dias que se seguiram, a arte invadiu aquele quarto branco de uma forma constante. Filmes, música e, volta e meia, um bate-papo sobre Monet.
Passado algum tempo, fui surpreendida pelo anúncio de que faríamos um passeio pelo hospital. Eu estranhei e houve a confissão de ter pressionado um enfermeiro mais gentil com o argumento de que se podia ser deslocado para exames, também seria permitido para uma atividade de lazer.
Eu ainda não havia entendido qual a era a intenção dele, quando meu pai revelou, triunfante:
– Têm vários outros quadros espalhados por esse andar, vai ser como ir em uma exposição!
Sorri e entrei na brincadeira, demonstrando igual euforia pela oportunidade de ouvir suas observações pelo que provavelmente seria a última vez.
E assim fomos pelos corredores. Eu conduzindo a enorme cadeira de rodas com aquele paciente muito magro, com o corpo envolto em uma camisola branca que o deixava com a aparência ainda mais esquelética.
Quando eu parava para observar alguma pintura, conseguia ver seus olhos brilhando de admiração. Meu amor por ele transbordava naquele momento e eu segurava valentemente as lágrimas para não estragar aquele instante de felicidade.
Pouco tempo depois, ele se foi. Enquanto eu via a família chorando, fui arrumando roupas e juntando objetos de forma meio mecânica, evitando desabar antes de resolver todas as necessidades práticas e burocráticas que envolvem a morte.
Mas antes de sair do quarto para assinar documentos, eu olhei para aquele quadro especial pela última vez e pensei:
– Monet perdeu um admirador.
Uma singela homenagem escrita em memória ao meu pai, um engenheiro com alma que apreciava Arte, Literatura e Música. E soube enxergar a beleza da Vida como poucos…
Para quem quer conhecer mais sobre Claude Monet, sugiro esse livro aqui.
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