A elaboração de uma lista de melhores filmes do ano é sempre um processo que evidencia os critérios de quem a elabora, isto é, diz menos sobre os filmes do que sobre sua própria construção. Ao fazê-la, o espectador/o crítico se encontra num beco sem saída ao expor uma relação que é absolutamente pessoal. A contradição não é apenas aparente, mas concreta. Resta então costurar uma relação entre os filmes, sem a forçar, para lhe empregar algum sentido.
Minha eleição pessoal, tradicionalmente em 11 filmes, o leitor acompanha abaixo com breves comentários.
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- Trama Fantasma, de Paul Thomas Anderson (Estados Unidos)
É melhor dizer logo de cara que Trama Fantasma é o filme de melhor execução que Paul Thomas Anderson já realizou. A confusão de valores narrativos e temáticos que antes lhe afetavam, neste filme o enriquecem. Em primeiro lugar, Trama Fantasma assume os monstros de sua ficção ao abraçar de vez o realismo em um sentido muito evidente, qual seja, o de capturar e sublinhar certas características do tempo e do espaço sem as decorações narrativas que estavam lá em Magnólia, Embriagado de Amor, Sangue Negro e outros de seus filmes. (texto completo no link)
- As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra (Brasil)
As Boas Maneiras, nova parceria de Juliana Rojas e Marco Dutra, assume a roupagem do filme de fantasia dark, repleto de motivos visuais fabulares, de imaginações que se tornam carne e sangue, de sonhos que são também outra coisa, de clara aposta estética em uma estrutura de resgate a partir de várias referências matriciais que percorrem e marcam a história das imagens (da pintura, do cinema: da luz). É precisamente, paradoxal que seja, por se movimentar entre gêneros que o filme corrige sua postura narrativa com o contrapeso que um exige do outro, deslocando as sensibilidades do espectador para o interior de seu tecido narrativo. (texto completo no link)
- Antes que Tudo Desapareça, de Kiyoshi Kurosawa (Japão)
Antes do mundo vir a acabar, que é o que menos importa, ele deixa seus habitantes em estado de completo aniquilamento emocional. Kurosawa domina em absoluto a arte de perverter as expectativas do espectador. Filme pensado politicamente, como sempre, no limiar entre a identificação emocional e a ironia. Provavelmente a cena final mais bela de todo o cinema no ano está aqui.
- A Câmera de Claire, de Hong Sang-soo (Coréia do Sul/França)
É preciso ter humildade para fazer um filme, diz uma personagem. A conversa é a matéria-prima eterna de Hong Sang-soo e o que torna seus pequenos filmes em grandes histórias. O encontro, o desencontro. Cada diálogo é uma descoberta não só da trama que vai se descortinando sutilmente, mas da própria essência de um cinema movido mais pela escuta que pela observação.
- 120 Batimentos por Minuto, de Robin Campillo (França)
A força do filme de Robin Campillo não é sua sensibilidade narrativa, questão de tratamento do tema. Não estamos falando de um filme que deseja partilhar a culpa com o espectador, fazê-lo simplesmente lamentar a dor do outro. Poderia ter sido diferente, como pensamento reativo, não é uma possibilidade colocada por Campillo. O problema do HIV que o filme expõe não é uma disputa sobre a direção da luta, mas sobre a canalização da energia. É preciso seguir em frente.
- Amante por um Dia, de Philippe Garrel (França)
Eis que Garrel, mago das relações conjugais, homem que filma no ritmo em que a vida acontece, cometeu mais um grande filme cheio de nuances que tornam a compreensão das soluções narrativas muito incertas. Isso pois ele não faz julgamentos morais. Ele mira o vacilo, a dúvida, o processo de tomada de decisão, a impostura romântica e os pensamentos avoados. É de sair perplexo após cada encontro com um de seus filmes.
- Uma Temporada na França, de Mahamat-Saleh Haroun (França/Chade)
As filmografias diaspóricas dos cineastas africanos, principalmente os residentes na França, têm em Mahamat-Saleh Haroun o seu expoente mais conhecido. Não é por acaso. Haroun – com Grigris (2013) e agora com este novo filme – tem a sensibilidade medida pela observação cotidiana, com um cinema dedicado aos dilemas contemporâneos dos imigrantes africanos na Europa.
- O Dia Depois, de Hong Sang-soo (Coréia do Sul)
A ideia de “evolução” qualitativa na obra de um artista é geralmente mal aplicada pela crítica de arte, principalmente a contemporânea. Ao analisar o cinema de Sang-soo o seu uso deveria ser ainda mais tímido, quando não simplesmente convidado a se retirar do repertório crítico. Pegue um de seus filmes e assista, embaralhe a lista e pegue outro, e assim por diante. A experiência será sempre demolidora e, sem paradoxo aqui, misteriosamente diferenciada. A razão é que Sang-soo conhece os seus motivos cinematográficos como poucos cineastas de nosso tempo – neste ano, tanto O Dia Depois quanto A Câmera de Claire deixam isso bem claro. E isso não o aprisiona, mas o liberta. Questão de critério e método.
- Em Chamas, de Lee Chang-dong (Coréia do Sul)
Talvez o melhor filme de Chang-dong, Em Chamas tem uma paciência insuspeita para introduzir o espectador ao mundo de seus personagens, contar de onde eles são, o que fazem, quais suas ambições e desejos. É o aspecto que mais me encanta no filme, a forma não só de usar a duração (prolongando os diálogos, segurando o corte), mas de expressá-la, fazer sentir o tempo. O seu conteúdo transborda por aí. O objetivo, claro, é chamar o espectador para aquele universo, sob o signo da dúvida, sem mastigar para ele os desdobramentos. Western, o filme seguinte desta lista (assim como Trama Fantasma, aliás), também me remete a esse controle do “peso do tempo” em cada cena. As forças não se dissipam, mas se modificam e explodem. Aí é com o espectador.
- Western, de Valeska Grisebach (Alemanha)
A percepção das modernas relações de classe que Western expõe é evidente: são nelas que se identificam as disputas mais árduas para a classe trabalhadora. Todavia, não se apresse o espectador, não é em Marx que Valeska Grisebach busca a explicação para os conflitos do filme, que tem como ambição colocar em crise o drama muito específico de um grupo de operários, de vários países, em uma cidade búlgara de interior. O western do título alude ao fato de que, como no faroeste clássico, alguém ou um grupo geralmente chega para impor uma transformação, seja a construção de uma ferrovia ou para explorar e dominar um pedaço de terra. Aqui, como lá, essa relação é atravessada pela ambiguidade o tempo inteiro no mesmo ritmo, sem clímax. Não há redenção possível.
- Infiltrado na Klan, de Spike Lee (Estados Unidos)
Com o Infiltrado na Klan, Spike Lee não deixa dúvidas: partiu para a luta armada. Para desembrulhar o racismo, o humor não se articula como gatilho retórico, mas como regime de compreensão do absurdo. É uma opção do narrador que qualifica o discurso do filme, além de oferecer dificuldades ao juízo do “filme militante” que não enxerga as tensões que circulam na sociedade para além do seu espaço de ação e luta – o que acontece muitas vezes com Ken Loach e Michael Moore, para citar alguns. Um de seus melhores!
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